Medicina

O câncer pode ser hereditário?

Na batalha contra o câncer, é essencial consultar um geneticista especializado em neoplasias – principalmente se houver histórico da doença na família

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Em meados de 2013, a atriz Angelina Jolie causou furor ao anunciar que tinha se submetido a uma mastectomia bilateral (retirada de ambas as mamas). Mais recentemente, ela voltou às manchetes por ter retirado os ovários e trompas. O motivo? Evitar o câncer, que ela descobriu ser genético, herdado da mãe. Desde então, os testes genéticos para diagnóstico de doenças vêm gerando amplos debates. “Foi evidente o aumento na procura do exame realizado pela atriz, tanto por mulheres com histórico de câncer de mama na família, quanto por outras, sem histórico”, afirma o Dr. Israel Gomy, médico especialista em Genética Médica e Oncogenética, que atua no Instituto de Hematologia e Oncologia Curitiba (IHOC).

De acordo com o Dr. Israel, apenas 5% a 10% dos cânceres, em geral, são hereditários, isto é, passam de geração em geração e aumentam o risco de desenvolver um tumor ao longo da vida. No caso do câncer de mama, cerca de 10% dos casos carregam essa predisposição, enquanto no de ovário o percentual chega a 15%.

Para entender como funciona essa predisposição genética, o especialista faz uma comparação com uma balança: de um lado estão os fatores ambientais (hábitos de vida, como dieta e exercícios), e do outro, fatores hereditários, que, via de regra, significam que alguém na família já teve a doença.  “Digo ‘via de regra’ porque nem sempre é preciso haver um forte histórico de câncer na família para se suspeitar de hereditariedade”, explica o médico.

Colocados os fatores ambientais e hereditários, a balança vai pender para o lado onde houver mais peso: se a pessoa leva uma vida sedentária, exagera em carnes gordurosas ou fuma, o peso do ambiente vai ser maior. Se tem uma vida saudável, mas relata vários casos de câncer de um mesmo lado da família (paterno ou materno), casos de câncer em idade jovem (antes dos 50 anos), ou de parentes que tiveram mais de um câncer, o peso vai pender para o lado da hereditariedade.

É o que ocorreu na família do analista de sistemas João Erasmo de Freitas, de 45 anos, que aguarda o resultado do mesmo exame realizado pela atriz Angelina Jolie, o BRCA1, que demora cerca de seis meses para ficar pronto. “Além de ter tias e primas com o histórico de câncer no lado paterno e materno, duas de minhas irmãs e o meu pai já enfrentaram o problema. Uma delas, inclusive, fez a mesma cirurgia da Angelina Jolie”, relata o paciente.

O caso mais recente na família de João Erasmo foi o de sua irmã mais nova, que tem 35 anos. “Diante do histórico familiar, ela chegou a fazer o exame BRCA1, mas o resultado chegou tarde, quando a doença já tinha sido detectada e estava em tratamento. Fiquei assustado com tudo isso e, embora faça exames preventivos para o câncer de próstata há mais de dez anos, resolvi buscar mais essa alternativa de prevenção, que tem um custo alto, mas poderá evitar o pior, uma vez que a hereditariedade tem um peso grande no meu caso”, acentua o paciente.

 

O peso da genética

Segundo o Dr. Israel Gomy, até bem pouco tempo atrás, os poucos laboratórios que ofereciam testes genéticos para câncer hereditário testavam somente os fatores mais importantes para o surgimento da doença. Para que o resultado fosse positivo, a família tinha que se enquadrar muito bem dentro de uma síndrome hereditária, como no caso de Angelina Jolie. “Na atriz, foram testados os genes BRCA1 e BRCA2, os principais ‘pesos’ da parte hereditária do câncer de mama e ovário. O problema é que existem muitos outros pesos, maiores e menores, que também devem ser avaliados”, explica o médico.

Os principais representantes desses ‘pesos menores’ são os chamados SNPs (da sigla em inglês para polimorfismo de nucleotídeo único). Eles são responsáveis pelas nossas diferenças do DNA – “apenas” 0,1% do genoma, ou, em números, mais de três milhões de SNPs. “Quanto mais próximas geneticamente duas pessoas forem, maior a chance de compartilharem esses SNPs, e assim, desenvolverem o câncer em uma mesma família”, conclui o Dr. Israel.

Sabe-se, por estudos populacionais, que em cerca de 20% a 30% dos casos de câncer o paciente tem algum parente com a doença. Contudo, isso não significa necessariamente um alto risco hereditário, e sim uma combinação de SNPs herdados com fatores ambientais, que, juntos, aumentam a suscetibilidade à doença.

 

Mapeando os nossos genes

Atualmente, com o avanço da tecnologia dos exames de genética molecular, é possível mapear quase todos os nossos genes. “Digo quase, pois a técnica pode ‘deixar de fora’ alguns ‘erros’ genéticos específicos, como regiões do DNA que ficam entre os genes e que contêm a maioria dos SNPs. É cada vez mais frequente a solicitação desses mapeamentos para doenças hereditárias muito complexas, incluindo o câncer, mas também para outras doenças de origem genética, como surdez, cegueira, deficiência intelectual, entre outras”, informa Dr. Israel.

Contudo, há, essencialmente, dois principais empecilhos ou desvantagens de tais testes, segundo o geneticista. “Um é o custo, pois as seguradoras de saúde costumam não cobri-los, a não ser que sejam muito bem justificados. Mesmo assim, o segurado precisará participar com alguma parcela do valor. O outro, e creio que o principal, pois os custos estão diminuindo, é quanto aos resultados dos exames”, acentua. Existe a possibilidade de o resultado não ser informativo ou decisivo para a tomada de alguma conduta e, com isso, gerar uma grande ansiedade, tanto no paciente quanto na família. De acordo com o médico, quando se “procura uma agulha em um palheiro”, é possível encontrar várias agulhas, sem saber se são inofensivas ou perigosas.

“Viver com a dúvida de carregar ou não uma predisposição a qualquer doença, ainda mais uma doença que pode se agravar se não diagnosticada precocemente, certamente gera angústia para toda a família”, acrescenta Dr. Israel. Existe, porém, uma segunda possibilidade de resultado: os achados secundários. Em outras palavras, ao procurar “agulhas”, são encontrados “alfinetes” que nada têm a ver com o motivo do exame, mas que podem causar uma doença potencialmente fatal. “Isso tem gerado polêmica em vários países, como os Estados Unidos. Esses achados devem ou não ser revelados ao paciente ou aos seus familiares? Temos o ‘direito’ ou o ‘dever’ de saber de todas as nossas predisposições?”, questiona o especialista.

 

Avaliação do geneticista

Quando forem identificados tumores e pólipos, ainda que benignos, é de extrema importância que o paciente seja avaliado por um geneticista clínico, para que se faça uma análise criteriosa do histórico pessoal e familiar de qualquer tipo de doença. De posse de todas as informações necessárias, este profissional realizará o chamado aconselhamento (ou assessoramento) genético, que significa orientar o paciente e a família quanto às opções em relação aos exames genéticos, aos métodos de rastreamento de tumores e até mesmo orientar as decisões de redução do risco, como cirurgias (mastectomia, por exemplo) ou medicações.

Vale lembrar que a idade é o principal fator de risco para a maioria dos cânceres. “Quando eles ocorrem precocemente, acometem diferentes órgãos (exceto em caso de metástases), são bilaterais ou possuem características anatomopatológicas e/ou genéticas peculiares, deve-se, então, suspeitar de hereditariedade e encaminhar ao especialista, que vai procurar ‘desvendar’ quais são os reais pesos nessa balança”, finaliza o geneticista do IHOC.

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